"Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus
caminhos, diz o Senhor" (Isaías 55.8).
“A grandeza da obra divina, amados filhos, ultrapassa e supera de muito as possibilidades de nossa
linguagem humana; daí provém a dificuldade de falar, assim como a razão de não calar” (Leão Magno [?- 461]. ‘Nono Sermão sobre o Natal’. In: Sermões Sobre o Natal e a Epifania. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 66).
Se alguém, desconhecendo a história do Evangelho, imaginasse a presença de Deus na realidade humana, certamente o faria em termos bem diferentes daqueles que, desde a infância, estamos habituados.
Sem dúvida, revestiria tal acontecimento com muito luxo, elegância e beleza. Provavelmente o situaria numa suntuosa mansão, moldando o cenário com extremo cuidado e reverência. Afinal, nada seria suficientemente grandioso para acolher Aquele que é o autor da vida e o criador de todas as coisas, não é mesmo?
É possível ainda que esse evento singular fosse descrito como um fenômeno espetacular – digno de figurar nos filmes de Hollywood – com demonstrações efusivas de poder e de força!
Que contraste com a narração dos textos bíblicos! Um simples casal à procura de hospedagem encontra numa manjedoura o berço que vai abrigar um frágil neném no qual, entretanto, se depositam as mais caras esperanças do povo. A cidade que os acolhe nem figura nos mapas, sendo praticamente desconhecida pelos dominadores romanos. Faltam-lhe o brilho das capitais e a importância econômica das grandes metrópoles. Situa-se, portanto, na periferia do sistema político e religioso.
Visitam a criança pobres pastores, vistos como impuros pela piedade farisaica, pois o trabalho constante e sem descanso, a que estão submetidos, os impede de cumprir todos os rigores da Lei. Por sua vez, os magos do Oriente - os quais, segundo o evangelho de Mateus, não eram três e nem reis, como pretende a tradição, representam tanto a sabedoria como a humildade, e não a ostentação e o poder. Aliás, entre os poderosos, prevalecem ou a indiferença ou o temor. O imperador, em Roma, o ignora; Herodes, na Judéia, manda matá-lo. A teologia mais antiga da Igreja viu na encarnação, sobretudo, a expressão do esvaziamento – da quenose – de Cristo, que sendo rico, se fez pobre (2Co 8.9); que sendo divino, assume a condição de servo (Fl 2.5-8).
Talvez por isso, muita gente, tanto ontem como hoje, tem dificuldades em entender o nascimento de Cristo. Definitivamente, ele não corresponde à nossa maneira de pensar e encarar a vida! Nesse sentido, pode-se dizer que Jesus representa, para a grande maioria de pessoas, uma grande decepção, como bem expressa o verso de Richard Fanolio:
Eles esperaram um general...
Receberam uma criança.
Eles esperaram a coroação...
e tiveram uma estrela.
Eles esperaram a vitória...
Eles receberam amor!
(Citado em English, Donald. Discipulado Cristão: O Caminho Difícil. São Paulo: Imprensa Metodista, 1978, p. 41).
Já no segundo século da era cristã, os filósofos pagãos ironizavam a pregação da Igreja, quando comparavam a sua confissão de fé em Jesus, como o Filho Unigênito de Deus, com as origens modestas e o fim trágico d'Aquele que era cultuado, pelos cristãos, como único Senhor e Salvador. Por exemplo, Celso, médico e pensador platônico que viveu no final desse período, revela os preconceitos da classe culta da Antigüidade, ao questionar as “pretensões” cristãs, lembrando que Jesus era “originário de um lugarejo da Judéia e filho de uma pobre camponesa que vivia do seu trabalho” (Celso. Contra os Cristãos. Lisboa: Editorial Estampa, 1971, p.19).
A sua elevada concepção de um Deus impassível era, na verdade, incompatível com a interpretação da comunidade cristã. Com firmeza, ele procurava demonstrar como as convicções dos discípulos de Cristo se opunham aos mais elementares princípios da razão. Na obra A Palavra Verdadeira, podemos sentir a força de sua argumentação:
O corpo de um Deus não poderia ser feito
como o teu; o corpo de um Deus não seria
formado e procriado como o teu foi; o corpo
de um Deus não se alimenta como te
alimentaste; o corpo de um Deus não se
serve de uma voz como a tua, nem dos
meios de persuasão que empregaste (...)
Que Deus, que filho de Deus, aquele que
seu pai não pôde salvar do mais infame
suplício e que não pôde ele próprio preservar-
se? (Ibidem, p. 22).
A fragilidade humana não combina com a ideia de um Deus Onipotente. A teologia da glória (hoje, diríamos da prosperidade), porquanto identifica a presença divina apenas nos eventos extraordinários, coroados de êxitos, é incapaz de enxergar a ação de Deus no sofrimento e no contexto dos limites da criação. Convenhamos, não é fácil, dentro dos padrões estritos da lógica, acreditar na palavra dos anjos (Lc 2.12). Como aceitar que aquela criança envolta em faixas é o Messias esperado, Emanuel, Deus-conosco?
Se a nossa razão não o reconhece, a fé, no entanto, acolhe e abraça essa verdade. Deus é diferente de nossos esquemas mentais e não se
reduz às nossas mesquinhas expectativas! Ele não se impõe com violência, nem suprime a nossa liberdade, pois quer ser acolhido com amor, e não como resultado de provas irrefutáveis de seu extraordinário poder. Por esse motivo, nós não cantamos simplesmente: "Grande é nosso Deus, incomparável o seu poder!", mas também cantamos o seu amor sem limites.
Desse modo, o que a nossa imaginação não pode conceber, nem a razão penetrar, a fé reconhece e celebra: a força da vida se manifesta na singeleza e na fragilidade da criança, revelando o mistério do amor que a tudo redime e renova.
É Advento! É Natal! Deus nasce, assumindo a vida humana, e, como sempre, surpreende a todos.
Fonte: José Carlos de Souza (Professor na Faculdade de Teologia – UMESP – e pastor da Igreja Metodista
Que darei eu ao Senhor por todos os benefícios que me tem feito?
SALMOS 116.12